sexta-feira, 19 de novembro de 2010

É curiosa a forma como nos vamos afeiçoando a pequenos nadas que fazem parte da nossa vida, pequenas coisas, objectos, lembranças que vamos colocando na gaveta das coisas.

Eu guardo de tudo: tubos de cola espremidos, um nariz de carnaval sem elástico, bilhetes de cinema e autocarro, canetas meio mastigadas, porta-chaves partidos, um esboço de origami. Por si só não significam nada, absolutamente zero, mas cada uma destas coisas tem uma lembrança associada que as transformam em pequenos tesouros. Um dia bem passado na praia, uma namorada perdida, uma brincadeira de menino ....

Na gaveta das coisas tudo se encontra em desordem. E eu em desordem também. O passado desarrumado, os objectos trocados, nada no devido lugar. É assim que deve ficar. As lembranças não têm ordem aparente, vêm à memória espontaneamente, inconscientemente, e é assim que a gavetas das coisas deve ficar. A minha empregada tem o hábito de querer acertar com o local exacto de cada nada, mas por mais que tente fica sempre demasiado à esquerda, demasiado à direita, um grau ou dois, gira no sentido dos ponteiros do relógio e depois no sentido contrário mas a desordem mantém-se. É assim que eu quero. Com o decorrer dos anos vai-se ganhando carinho pelos objectos que são nossos, mesmo aqueles em que decidem mexer. Hoje recordo-me do livro de aventuras que o meu pai me deu em criança, amanhã vejo o guardanapo com a tua letra gravada.

(@ Buenos Aires)

a.r.T.

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Eu e Tu. Os nossos corpos entrelaçados e o silêncio.
Foi um dia perfeito.


a.r.T. 

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

O Tejo é mais Belo


    «O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
    Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
    Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.
    O Tejo tem grandes navios
    E navega nele ainda,
    Para aqueles que vêem em tudo o que lá não está,
    A memória das naus.

    O Tejo desce de Espanha
    E o Tejo entra no mar em Portugal.  
    Toda a gente sabe isso.
    Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
    E para onde ele vai
    E donde ele vem.
    E por isso porque pertence a menos gente, 
    É mais livre e maior o rio da minha aldeia. 

    Pelo Tejo vai-se para o Mundo.
    Para além do Tejo há a América
    E a fortuna daqueles que a encontram.  
    Ninguém nunca pensou no que há para além
    Do rio da minha aldeia.

    O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.  
    Quem está ao pé dele está só ao pé dele.»

    (O Guardador de Rebanhos. Caeiro, Alberto)

a.r.T.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010


O Inverno este ano veio rigoroso para me atormentar, se abrir a janela nuvens e chuva lá fora, se a deixar fechada nuvens no quarto e chuva na cama. Trouxe a resignação dos dias curtos e dos candeeiros acessos às quatro da tarde, a leve esperança de um dia de sol amanhã e, daqui a nada, o cobertor nas pernas.

A chuva cai obliquamente e eu nesta lassidão, submetido a uma quietude e abandono do corpo e da alma, rendo-me sem uma queixa.


a.r.T.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Doppelgänger

Há dias em que não me reconheço. O meu espírito transforma-se, torno-me noutro e deixo de existir como sou. Parece que um alter ego vive dentro de mim e me queima a alma ditando acções que o meu corpo obedece sem um suspiro de revolta, uma representação acentuada do meu lado negro que me empurra para o Mal. Fico outro em mim mesmo, transmuto-me noutro que não eu mas que caminha com estas pernas, que fala com esta boca, que toca com estas mãos... completamente anestesiado com o doce veneno da inconsciência.

Vejo a minha própria alma projectar-se para fora do meu corpo e embarcar num estado de violência e loucura. Uma verdadeira besta nasce dentro de mim e converte-me a fazer coisas cruéis. Esmagar ossos, furar olhos, arrancar unhas, cuspir na cara de alguém, puxar cabelos. Ah, apetece-me espancar, lutar, empurrar, gritar sem descanso nem piedade!

Eu tento anulá-lo, mas ele subsiste, não sei explicar como, feito de matéria persistente que cresce à minha volta e me envolve, vestindo-me de escuridão da cabeça aos pés, com uma sombra em vez de cara. A alma vazia de bondade e compaixão, o rosto marcado de horrores indizíveis e um sorriso da mais pura perversão. Despe-me de todo e qualquer apetrecho de nobreza ou pureza.

Depois, aos poucos, desaparece e sou trazido de novo à vida que preferia não ter deixado, as sensações acalmam-se, a razão toma lugar e acabo por descobrir que aquilo que verdadeiramente habita em mim me desola, me envergonha e me assusta.


a.r.T.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Tenho andado confuso, nada parece fazer sentido, até os ponteiros do relógio andam trocados, com vida própria, ora para a frente ou para trás. Deviam andar só para trás, fazer recuar o tempo, voltar à época em que era feliz, em que era criança e brincava e sorria genuinamente. Sinto-me velho, gasto e em desuso.

Olho-me ao espelho e não me reconheço. Não consigo autoretratar-me, não sei autobiografar-me. As feições estranhas, a testa, o queixo, o nariz e um sinal que reparo agora que não tinha, não dei por este sinal, e a boca com gengivas em estado de calamidade que obrigam os dentes a deslocarem-se em sentidos curiosos. O que se passa comigo? Faleci-me, acabou-se-me o corpo.

Esconde a dor, arruma-a na mala de viagem! Esquecido de gatas e lágrimas nos olhos não de lamento, não de verdadeira dor, mas de não saber o que se passa. A desorientação a ir e a voltar, o meu corpo feito de peças excessivas que estorvam, fragmentos supérfluos, a voz que não corresponde à minha, o apoio que me falta, que imagem é esta no espelho? Este reflexo não se parece comigo, parece-se com a minha incompreensão e o meu espanto. E que pregas de desconsolo são estas? Deve ser castigo por ter pecado, pequei e definhei. Quero desamarrotar este o rosto encarquilhado, quero recordar-me de como era. Mas isto passa, passa, se a vida que é tudo passa por fim, esta incerteza também há-de passar.

Foi há tanto tempo e no entanto foi ontem. Quando era novo era tão bonito. Sardas no nariz, olhos cheios de vida, sorriso fácil, cabelo farto. Limitei-me a piscar os olhos e fiquei como agora. E piscar os olhos é um instantinho. Pareço mascarado com rugas, careca, e com vontade de ir mais cedo para a cama. Falo mas não me entendo, balbucio referências indefinidas, «coisa» e «aquilo». Definhei devagar ou num instantinho? Neste momento sou feio, velho e podre.

Somos menos que um mero instante.

Brincadeira de mau gosto, a idade.


a.r.T.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

2010 e outros tantos...

«Prefiro ser um homem de paradoxos do que um homem de preconceitos», já dizia Jean Jacques Rousseau.

E preferências à parte, todos os paradoxos e preconceitos que até à data ditaram o modo como preencho a noite e os dias, como náufragos que de uma ou outra maneira estão condenados a sobreviver no oceano que sou, acabam por ser engolidos ou vomitados porque até essas totalidades ou esses imensos nadas que estão por ai, seja como for, enjoam e nunca deixam de ser tal e qual sopas instantâneas às quais só falta juntar água. Água que ora sólida ora gasosa vai ganhando cor e gosto por onde quer que vá passando.

2009 passou e esperemos que outros tantos ainda passem, saudações e muita saudade à mistura para os da casa e para todos vós.


A.r.t.