terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Doppelgänger

Há dias em que não me reconheço. O meu espírito transforma-se, torno-me noutro e deixo de existir como sou. Parece que um alter ego vive dentro de mim e me queima a alma ditando acções que o meu corpo obedece sem um suspiro de revolta, uma representação acentuada do meu lado negro que me empurra para o Mal. Fico outro em mim mesmo, transmuto-me noutro que não eu mas que caminha com estas pernas, que fala com esta boca, que toca com estas mãos... completamente anestesiado com o doce veneno da inconsciência.

Vejo a minha própria alma projectar-se para fora do meu corpo e embarcar num estado de violência e loucura. Uma verdadeira besta nasce dentro de mim e converte-me a fazer coisas cruéis. Esmagar ossos, furar olhos, arrancar unhas, cuspir na cara de alguém, puxar cabelos. Ah, apetece-me espancar, lutar, empurrar, gritar sem descanso nem piedade!

Eu tento anulá-lo, mas ele subsiste, não sei explicar como, feito de matéria persistente que cresce à minha volta e me envolve, vestindo-me de escuridão da cabeça aos pés, com uma sombra em vez de cara. A alma vazia de bondade e compaixão, o rosto marcado de horrores indizíveis e um sorriso da mais pura perversão. Despe-me de todo e qualquer apetrecho de nobreza ou pureza.

Depois, aos poucos, desaparece e sou trazido de novo à vida que preferia não ter deixado, as sensações acalmam-se, a razão toma lugar e acabo por descobrir que aquilo que verdadeiramente habita em mim me desola, me envergonha e me assusta.


a.r.T.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Tenho andado confuso, nada parece fazer sentido, até os ponteiros do relógio andam trocados, com vida própria, ora para a frente ou para trás. Deviam andar só para trás, fazer recuar o tempo, voltar à época em que era feliz, em que era criança e brincava e sorria genuinamente. Sinto-me velho, gasto e em desuso.

Olho-me ao espelho e não me reconheço. Não consigo autoretratar-me, não sei autobiografar-me. As feições estranhas, a testa, o queixo, o nariz e um sinal que reparo agora que não tinha, não dei por este sinal, e a boca com gengivas em estado de calamidade que obrigam os dentes a deslocarem-se em sentidos curiosos. O que se passa comigo? Faleci-me, acabou-se-me o corpo.

Esconde a dor, arruma-a na mala de viagem! Esquecido de gatas e lágrimas nos olhos não de lamento, não de verdadeira dor, mas de não saber o que se passa. A desorientação a ir e a voltar, o meu corpo feito de peças excessivas que estorvam, fragmentos supérfluos, a voz que não corresponde à minha, o apoio que me falta, que imagem é esta no espelho? Este reflexo não se parece comigo, parece-se com a minha incompreensão e o meu espanto. E que pregas de desconsolo são estas? Deve ser castigo por ter pecado, pequei e definhei. Quero desamarrotar este o rosto encarquilhado, quero recordar-me de como era. Mas isto passa, passa, se a vida que é tudo passa por fim, esta incerteza também há-de passar.

Foi há tanto tempo e no entanto foi ontem. Quando era novo era tão bonito. Sardas no nariz, olhos cheios de vida, sorriso fácil, cabelo farto. Limitei-me a piscar os olhos e fiquei como agora. E piscar os olhos é um instantinho. Pareço mascarado com rugas, careca, e com vontade de ir mais cedo para a cama. Falo mas não me entendo, balbucio referências indefinidas, «coisa» e «aquilo». Definhei devagar ou num instantinho? Neste momento sou feio, velho e podre.

Somos menos que um mero instante.

Brincadeira de mau gosto, a idade.


a.r.T.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

2010 e outros tantos...

«Prefiro ser um homem de paradoxos do que um homem de preconceitos», já dizia Jean Jacques Rousseau.

E preferências à parte, todos os paradoxos e preconceitos que até à data ditaram o modo como preencho a noite e os dias, como náufragos que de uma ou outra maneira estão condenados a sobreviver no oceano que sou, acabam por ser engolidos ou vomitados porque até essas totalidades ou esses imensos nadas que estão por ai, seja como for, enjoam e nunca deixam de ser tal e qual sopas instantâneas às quais só falta juntar água. Água que ora sólida ora gasosa vai ganhando cor e gosto por onde quer que vá passando.

2009 passou e esperemos que outros tantos ainda passem, saudações e muita saudade à mistura para os da casa e para todos vós.


A.r.t.

sábado, 9 de janeiro de 2010



São onze e meia da manhã e a minha casa encontra-se um caos, parece um palco de guerra, cheia de destroços, restos esquecidos, ruínas abandonadas. E eu queria arrumá-la, mas sem sujar as mãos, aliás, sem mexer uma palha. Não me parece que assim consiga. Na minha casa não há jornais, mas ali no canto amontoa-se uma imensidão de papeis, textos para corrigir, cartas por enviar, livros à espera de serem lidos, diários perpetuamente inacabados. É curioso chamar casa a este minúsculo apartamento que tanto me entristece. Uma parede vermelha e uma janela para distrair os olhos. De resto, o vácuo. Falta-lhe o calor, falta-lhe os livros da minha biblioteca inventada, falta-lhe mais alguém para além de mim. Eu e tu. Mas depois seriamos demasiados neste espaço tão pequeno. 18m2, seis por três, uma parede vermelha e uma janela. Na minha casa não há jornais... nem tão pouco televisão, portanto é por aquela janela que eu vejo o mundo. As quatro paredes do meu apartamento estéril são-me, ao mesmo tempo, cárcere e inspiração, túmulo e  recreio. São onze e meia da manhã, hoje são sempre onze e meia, e chove. A casa continua suja e desarrumada e eu ainda nada fiz. Quem me arranja uma ideia feliz para não pensar nisto? Vou para a janela ver o mundo passar. Que esquisito o mundo. Que esquisita forma de ser.


a.r.T.

Despertar Angustiante

Hoje acordei como o tempo, cinzento e doentio. Deve ser desta maldita gripe que me assaltou o corpo sem aviso nem misericórdia. Despertei de um sono com sobressaltos e aqui fiquei estendido, em total penumbra, nesta cama húmida e febril.

O meu espírito está um velho caduco, nem com ajuda de muletas há-de chegar longe. Ponho-me de pé, as costas curvam-se e o andar encolhe em passinhos custosos, cambaleando como um doente de longo leito que se volta a erguer. Não me arrisco mais que a fronteira do meu quarto, estou frágil e ainda me desfaço em cacos de porcelana. Tenho a alma por cárcere e não sei como ajeitá-la a levar o meu corpo a evitar tropeçar em obstáculos que movem-se lentamente e a enredar-se em teias que não estão cá.

A angustia claustral de estar assim, moribundo. Quero desatar de mim esta canseira, esta peste, e pô-la de banda como um trapo velho. Não sei ser assim!

Está aí algum médico? Preciso de confirmação se estou vivo ou morto. A veia do pescoço a latejar mas não de sangue que esse já não tenho, há muito que secou, de vazio que corre do meu coração. E a carícia que nunca vem. A tua carícia, a bênção das tuas mãos. A luz ténue da manhã vagamente espalhada, este quarto de porta fechada sempre aberta, a febre em mim, o chão frio como lápides, as veias do pescoço desreguladas e prestes a rebentar, e a minha testa a arder... Falta o amor dos teus braços sonhados à roda de mim.


a.r.T.