
Perco-me nas ruas movimentadas de Lisboa. Ruas cheias de vultos invisíveis, de gente de aspecto flutuante, de nódoas de movimento.
E quando dou por mim estou sozinho, sem pressa, em ruas e ruelas tortuosas, sinuosas, abstrusas, confusas profundamente entregue ao devaneio… Ruas que murmuram alguma coisa, que falam de si mesmas e transmitem uma sensação de intimidade. Janelas largamente abertas para os passantes, telhados de deliciosos e perfeitos desequilíbrios, o rio presente nas fachadas despejando luz, roupa estendida debruçando-se agitadamente ao ritmo do vento. No alto, estranhas nuvens ameaçam a minha quietude. Continuo. O chão polido de uma alvura enegrecida. Paredes de uma cor indefinida, difícil de determinar, perturbadas por cicatrizes de tanto sofrer. No ar misturam-se os aromas do alecrim e da maresia. O som longínquo da cidade a vibrar.
Mas isto dura um instante. As nuvens que cobrem o céu, emprestando um tom cinza que deixa a cidade mais triste, depressa despejam uma chuva torrencial que com grande furor me retira do meu encantamento. O bater de portas e janelas, o ranger dos passos sobre a calçada molhada. Refugio-me num café próximo. Sento-me numa mesa junto da vitrina e fico a observar, lá fora, gente encharcada, roupa molhada, corpos fugidios e a dança embriagada dos chapéus-de-chuva. Minutos, horas quem sabe, se passam e eu distraído a ver a água que corre dos algerozes directamente para os degraus de uma rua estreita. E eis que a cortina de chuva que caía começa a aliviar diante dos meus olhos. Toma lugar, então, um jogo de crianças: o Sol volta para logo tornar a desaparecer, e assim, numa cadência incerta, vai-se extinguindo e renascendo no meio de nuvens imponderavelmente ameaçadoras. Sai vitorioso o Sol que regressa, debruando de branco, numa luz constante, as paredes chorosas de uma cidade esquecida.
Lá fora ainda se ouvem os estalidos das gotas a cair dos telhados e eu sigo a chapinhar para me perder outra vez. Por entre uma porta aberta para a rua vislumbro uma senhora pesada, de alma aparentemente triste, que, antes que o marido chegue do trabalho, põe a mesa para o jantar. Mais à frente, um velho sentado à espera do fim num banco e que se perturba sob o meu olhar vazio. Oiço o passo de crianças que correm sem se desviar das poças de água, e de braços erguidos no ar gritam, desaparecendo tão rapidamente como surgiram. Por trás de um balcão, um comerciante impaciente, cinzento, que fala em voz baixa, serve copos de vinho tinto a cúmplices de conversas que o sorvem em longos tragos. Os pombos que saltitam pelas ruas, arrulhando e debicando as côdeas de pão, agora amolecido, plantadas durante a manhã. Ao longe admiro uma silhueta a desaparecer à medida que desce as escadas, as pernas primeiro, depois o tronco e por fim a cabeça…
Reparo no Sol a preparar-se para mergulhar no rio e desaparecer. Numa pressa desenfreada, antes que se quedem os últimos raios de sol mortiço, dirijo-me para o alto e, assim, contemplando com admiração a cidade pintada de poentes dourados que se entende a meus pés e que lentamente se esbate no ocaso, sou feliz. Tanto me basta, cidade amada.
...
a.r.T.

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